top of page

A digitalização da vida cotidiana

  • Foto do escritor: Artur Linck
    Artur Linck
  • hĆ” 6 dias
  • 10 min de leitura

Atualizado: hĆ” 5 dias

Talvez os nascidos na jÔ longínqua época analógica do século XX, onde a internet ainda era coisa de filmes de ficção científica e apenas acessível para governos e universidades americanas, ainda possuam lembranças de como era viver a vida off-line. HÔ alguns anos falÔvamos que íamos "entrar na internet", mas sabíamos que isso duraria um curto espaço de tempo, como uma espécie de portal ou janela, e que logo teríamos que desconectar e viver nossas vidas. Muito talvez pelo custo monetÔrio que isso gerava e também pelas limitações de atividades possíveis na internet da época. Eram tempos de internet discada, acessada através de um ligação normal para um servidor de internet feita necessariamente através de um componente chamado Modem instalado em um computador. O termo Personal Computer (PC) pode ser pensando apenas como um apelido (pelo menos na realidade brasileira da época), jÔ que para a maioria dos lares era mais um Community Computer (CC). Seu uso era muitas vezes compartilhado e disputado pelos integrantes da família e era tema de brigas por disputas de tempo de uso e ocupar a linha telefÓnica principal da casa. Ah! Logo depois do uso tínhamos que desligÔ-lo e cobri-lo com sua capinha de proteção de poeira tão característico da época. Ou seja: hÔ alguns anos atrÔs esse dispositivo ficava ligado por um curto espaço de tempo, raramente era estritamente de uso pessoal e seu uso era muitas vezes utilitÔrio para certas atividades específicas e consultas. Quem não tinha condições de adquirir um equipamento como esse tinha a opção de ir em alguma Lan House e pagar para se ter acesso a um PC com internet, imprimir algum documento, etc. Quem acha hoje em dia uma Lan House em sua cidade? Quase extintas, como as locadoras de filmes.

Computador de mesa e sua capa protetora
PC com sua capa de proteção

JÔ hoje, pelo menos nos últimos 20 anos, são raros os momentos que muitos de nós estão realmente no estado off-line. A partir do momento em que começamos a portar os pequenos computadores pessoais de mão nos bolsos e estes terem acesso à rede mundial de computadores de forma ininterrupta, fica muito difícil lembrar da época em que um aparelho celular servia apenas para ligar. Com a popularização dos smartphones e do acesso à internet, mandar uma mensagem para uma pessoa e essa não responder jÔ é algo estranho. Pelo menos no Brasil, o número de WhatsApp é quase um adendo ao CPF, assim como o perfil em alguma rede social. E-mail jÔ estÔ quase virando coisa do passado, geralmente utilizado para assuntos mais profissionais ou formais.

Hoje em dia, você leitor, conseguiria sair de casa sem seu smartphone apenas para dar uma volta na rua por uma tarde de sÔbado? Como pagaria um lanche ou café? E se precisasse se locomover para um lugar mais distante de sua casa faria isso como? Usando Ónibus? Se sim, saberia os horÔrios ou para onde iria determinada linha? Saberia se locomover pela cidade apenas pelo seu senso de direção e nomes de ruas sem um GPS? Se precisasse ligar para alguém nesse meio tempo, saberia o número de cabeça? Como faria para ligar? Como marcaria um encontro com algum amigo sem enviar uma mensagem de WhatsApp? Se essa pessoa de atrasasse, saberia esperar pelo tempo necessÔrio? Como você ficaria se você fosse o atrasado? Para muitas dessas questões banais, talvez pudéssemos pedir ajuda para alguém na rua, certo? Mas essa opção vir a mente hoje em dia é algo cada vez mais raro!

Essa foi apenas uma ilustração de uma hipotética pequena parcela de nossas vidas e focando em um singelo programa de sÔbado com amigos de certa parcela de população que jÔ estÔ com sua vida mergulhada nesses pequenos totens portÔteis. Agora imaginem isso em outras tantas atividades corriqueiras que fazemos em nosso dia a dia em que as tecnologias nas pontas dos dedos não só facilitam nossas vidas, como também possuem a capacidade de alterar rotas e comportamentos. Em alguns casos, a tecnologia é o único meio de viabilizar determinada situação, algo que anteriormente não seria possível. Isso sem dúvidas é também tema de reflexões socioeconÓmicas, jÔ que aqueles que estão de fora da realidade conectada por ter menos subsídios, estão sim excluídos do acesso a muitas coisas. Só um exemplo: desde o nascimento do PIX no Brasil, a circulação de papel moeda vem diminuindo muito no nosso dia a dia. Quem não tem acesso a uma conta/carteira digital, geralmente aberta por um simples smartphone, como ficarÔ num futuro não muito longe?

Falei mais acima das gerações pré internet mas e as que são chamadas de "nativos digitais"? Esses que jÔ nasceram no meio da digitalização da vida e nem sonham como era uma mera internet discada que muitas vezes perdia conexão ou um telefone celular que apenas ligava, mandava mensagens SMS e tinha o jogo da cobrinha. Particularmente tenho um certo incomodo com esse termo "nativo digital", admito. Chamamos alguém de nativo de algum país ou cidade quem fala fluentemente determinada língua ou dialeto de determinado país, conhece aspectos culturais, costumes, o humor específico, culinÔria, normas explicitas e implícitas e outros tantos pontos que nos indicam que essa pessoa sabe muito bem por onde circula, de onde vem e se identifica com isso. Agora: serÔ que saber onde clicar, qual a rede social da moda, como ligar e desligar um dispositivo pode indicar que alguém é nativo digital? SerÔ que saber manipular um dispositivo de tela é o suficiente para caracterizar alguém assim? Nascer num ambiente jÔ praticamente digital pode fazer alguém ser mais ambientado a ele? Sabem realmente as implicações de seus atos na internet puramente por saber futricar? Muitas vezes as famílias se isentam de intermediar a relação dos filhos com as telas e a internet com a justificativa de que eles sabem mais do que os adultos. SerÔ mesmo?

Diante disso, uma questão polêmica que surgiu recentemente foi o projeto de banir o acesso a smartphones em escolas por crianças e adolescentes. Apesar do alvoroço inicial de pais e alunos, jÔ nota-se uma melhora não só do aproveitamento escolar, como do resgate de atividades jÔ esquecidas com amigos ao ar livre e melhora nos vínculos sociais ¹. Embora esta seja uma mudança ainda recente e que necessita de acompanhamento e pesquisas, também temos que ter claro que não é a bala de prata para a qualidade do nosso sistema de ensino.

Mas a introdução cada vez mais aprofundada desses dispositivos em nossas vidas e a dependência cada vez maior para tarefas cotidianas coloca a questão do quanto tudo isso alterou a maneira como nos relacionamos com as pessoas, com o tempo e sua vivência, com nossa capacidade de lidar com o não saber inerente ao viver achando que tudo estaria disponível no Google e tantos outros aspectos. Um outro exemplo: O termo multi-tasking ou multi tarefas é utilizado para falar sobre a capacidade de um dispositivo computacional realizar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, sem perder o desempenho ou perder alguma atividade em segundo plano. Mas parece que começamos a acreditar que podíamos também fazer isso, olhando televisão, escutando música, olhando uma rede social e a depender até lendo um livro. Tudo junto e ao mesmo tempo! Ficam cada vez mais escassos os períodos de tédio, ligeiramente preenchidos pelo tempo de tela. HÔ também a introdução recente, massiva e estrondosa da Inteligência Artificial (IA) como o último Santo Graal alcançado pela humanidade, colocando inúmeras questões a serem ainda pensadas, mas que pelo ritmo frenético a que são lançados quase diariamente, dificulta e muito ao menos tecermos um arremedo de criticidade.

Muitos ainda podem ter uma visão inocente desses processos vertiginosos dos últimos 35 / 40 anos, pensando a internet e seus serviços como apenas uma rede mundial de computadores criada para comunicação e facilitação de nossas vidas. Eu, você e praticamente 99% das pessoas do mundo somos apenas usuÔrios comuns dos meios digitais, com algumas gradações de conhecimento e expertise. As chamadas Big Techs, responsÔveis por muitos serviços que utilizamos no nosso dia a dia como Google, Microsoft, Apple e Amazon lutam cada vez mais pela nossa atenção. HÔ inclusive um mercado futuro para isso, conforme nos explica a escritora Shoshana Zuboff em seu magnífico livro "A era do capitalismo de vigilância". Logo no início do livro ela coloca uma espécie de verbete de dicionÔrio que resume bem o que chama de Capitalismo de Vigilância:


1.Uma nova ordem econÓmica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para prÔticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas; 2. Uma lógica econÓmica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento; 3. Uma funesta mutação do capitalismo marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história da humanidade; 4. A estrutura que serve de base para a economia de vigilância; 5. Uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século XXI quanto foi o capitalismo industrial para o mundo natural nos séculos XIX e XX; 6. A origem de um novo poder instrumentÔrio que reivindica domínio sobre a sociedade e apresenta desafios surpreendentes para a democracia de mercado; 7. Um movimento que visa impor uma nova ordem coletiva baseada em certeza total; 8. Uma expropriação de direitos humanos críticos que pode ser mais bem compreendida como um golpe vindo de cima: uma destituição da soberania dos indivíduos. (ZUBOFF, p.15, 2019)


Mais adiante ela ainda coloca que: "... nĆ£o Ć© tecnologia; Ć© uma lógica que permeia a tecnologia e a direciona numa ação. O capitalismo de vigilĆ¢ncia Ć© uma forma de mercado que Ć© inimaginĆ”vel fora do meio digital, mas nĆ£o Ć© a mesma coisa que ā€œdigitalā€. (ZUBOFF, p.30, 2019). Ou ainda:


Em sua essência, o capitalismo de vigilância é parasítico e autorreferente. Ele revive a velha imagem que Karl Marx desenhou do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas agora com uma reviravolta. Em vez do trabalho, o capitalismo de vigilância se alimenta de todo aspecto de toda a experiência humana. (ZUBBOF, p.24, 2019)

HÔ uma corrida das Big Techs para serem cada vez mais assertivas em suas tecnologias de predição de gostos e comportamentos, introduzindo assim termos como mercado de comportamentos futuros e superavit comportamental. A autora inclusive ressalta o quanto isso é sem precedentes na história humana, algo que contribuiu e muito ao seu paulatino e acelerado estabelecimento. Como não temos qualquer parâmetro para analisÔ-lo ou comparÔ-lo, ficamos num terreno irreconhecível e a utilização de padrões jÔ conhecidos para interpretÔ-lo torna muito de seus efeitos invisíveis aos nosso olhos. Recentemente com a eleição do bilionÔrio americano Donald Trump à presidência dos EUA, percebemos que essas grandes empresas se aliaram ao mesmo e suas propostas de forma automÔtica, em escancarado sinal de apoio as políticas imperialistas norte americanas na recuperação de sua hegemonia mundial.

O que temos como algo jĆ” observado Ć© que o aumento do uso de telas e especialmente nos smartphones se mostra como algo nĆ£o tĆ£o acidental ou sem motivos outros. Tanto dispositivos com lindas telas chamativas como redes sociais com feeds infinitos rodados por algoritmos preditivos feitos para disputar nossa atenção e baseados em nossos supostos gostos e preferĆŖncias, sĆ£o mĆ”quinas de captura do olhar. Ɖ algo tentador: Ɖ como se tivĆ©ssemos acesso ao mundo na hora e quando quisermos, com a possibilidade de comprar algo hoje e isso pode chegar hoje mesmo. AlĆ©m disso, Ć© impressionante o quanto o meio digital se transformou em uma espĆ©cie de janela ou enquadramento do mundo, como se o que nĆ£o passasse nessa dimensĆ£o nĆ£o existisse. O papel das redes sociais nesse ponto Ć© visĆ­vel, jĆ” que produzem um pretenso enquadramento da vida de uma pessoa, como se o que fosse ali mostrado Ć© efetivamente o que essa pessoa Ć© (quantidade de curtidas, seguidores, storys, postagens).

A sujeição deliberada ou inocente com a qual nos colocamos perante essa revolução poderia ter alguma alternativa? A passagem de simples usuÔrios de tecnologias para a de atores que possam tomar decisões é algo possível? Pois não se prega aqui a demonização dessa digitalização da vida, jÔ que esse é um processo sem volta. HÔ muitos benefícios nas mais diversas Ôrea onde todo esse aparato se mostra útil e necessÔrio. Mas serÔ que não poderíamos pensar de que forma lidamos com tudo isso atualmente e nos reflexos disso para o futuro? Teríamos alguma saída com mais autonomia e protagonismo? Para pelo menos começarmos a pensar nisso, precisamos nos apropriar de alguns pontos para podermos tecer um mínimo de criticidade e ações possíveis. Uma espécie de letramento do mundo digital e como isso impacta nos mais diversos pontos de nossas vidas.

Venho me interessando cada vez mais por esse grande tema que abrigo aqui com o termo "A digitalização da vida cotidiana" e esta pequena reflexão tenta primeiramente situar/disparar/introduzir a questão. Não se trata de tirar conclusões apressadas ou criar teses, mas sim de que pelo menos possamos começar a fazer algumas perguntas, articulações, trocas e agitar discussões. HÔ pessoas de diferentes Ôreas do conhecimento que estão pensando e produzindo coisas interessantes sobre o assunto, como o filósofo chinês Yuk Hui e a brasileira Paola Cantarini estudiosa da Ôrea do direito, apenas para citar alguns nomes dos quais tive contato recentemente. Particularmente fiquei espantado com a quantidade de livros, podcasts e textos abordando os mais variados espectros da temÔtica sob as mais diversas perspectivas, o que prova que hÔ muito trabalho interessante ainda a ser feito.

Quanto à psicanÔlise, qualquer psicólogo ou psicanalista pode verificar que na clínica cotidiana esse assunto pode surgir frequentemente nas falas de pacientes, tamanho o alcance que tudo isso toma na vida de cada um de nós. Desde os efeitos que as redes sociais podem ter para cada um e do modo como nos relacionamos com o outro, da relação que temos com esses gadgets onde se esfumaçam os limites entre a vida profissional e pessoal nas urgências de respostas , até conflitos e mal entendidos em aplicativos de mensagens que podem trazer consequências importantes.

A pandemia de COVID-19 em 2020 acelerou e muito o aprofundamento dessa digitalização, introduzindo no campo da clínica a entrada forçada das sessões on-line em um período conturbado e angustiante sem contato físico. A popularização dos pagamentos eletrÓnicos como o PIX também mudou a relação que temos com o dinheiro e com a questão do pagamento em anÔlise, debate muitas vezes espinhoso. Acredito que se pararmos para pensar por alguns instantes podemos perceber o quão frutífero poderia ser esse debate no campo psicanalítico e como temos terreno ainda para explorar. Que tipo de articulações teóricas podem ser feitas? A teoria jÔ estabelecida pode nos ajudar pensar e como? Mas para isso, penso que precisamos colocar em anÔlise alguns pontos mais periféricos do tema, dialogando com os mais diversos campos do saber que também estejam nesse debate e costurando aos poucos isso com a teoria e clinica.

A jÔ citada autora Shoshana Zuboff compara o momento que vivemos com a revolução Fordista, ou seja, algo paradigmÔtico que pode mudar e jÔ estÔ mudando o entendimento que temos de muitas questões humanas. Parece que muitos dos temas abordados na conhecida série da Netflix Black Mirror, jÔ não são estão tão distantes assim do nosso dia a dia. Quais são os impactos disso tudo em nossas vidas? O que pode ser pensado e assim desnaturalizado? Perguntas como essas e outras ainda precisam serem feitas.


REFERENCIAS

1 . Após dois meses, professores e estudantes veem benefícios na proibição de celulares nas escolas. Link


ZUBOFF, Shosahana. A era do capitalismo de vigilância : A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Editora Intrínseca. 2021.


©2025 - Por Artur Linck. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page