Criaturas voadoras
- Artur Linck
- 3 de jul.
- 8 min de leitura
Acredito que o leitor de Lacan, ou até mesmo quem já passou pelas páginas de qualquer um de seus Seminários, textos dos Escritos ou até mesmo transcrições de entrevistas, já esbarrou em algum momento por eles. Obscuros, ilhados pelas páginas e desprovidos de forma conhecida, por vezes seguidos por avisos do tipo “Cuidado! São suportes para o pensamento de vocês, que não deixam de ter artifício…” (LACAN, p.198, 1988). É como se entrássemos num vasto campo, à primeira vista sem muitas bordas ou limites definidos, e depois de alguns passos: tropeçamos ou esbarramos neles. E estão por quase toda a parte! São estranhos, por vezes sem pé nem cabeça, como se estivessem voando bem ali no meio da folha de papel e nem ao menos sabemos de onde eles vieram ou para o que servem. Para alguns esses seres são quase E.T.s vindos de fora da galáxia, horríveis, asquerosos, estranhos e incompreensíveis.
Apesar deles e de suas vertigens provocativas, continuamos e viramos a página, pois alguns são realmente intraduzíveis. Após mais algum tempo, poderíamos pensar que enfim estamos livres e que talvez nada queiram dizer. Respiramos aliviados! Ufa! Assombrações? Podemos viver sem eles em nosso percurso? Seriam apenas oriundos da excentricidade lacaniana ou talvez de seu estilo?
Mas então eis que sorrateiramente, num belo dia: BAM! Outra vez! Não dá para evitar! Nos grupos de estudo e cartéis com outros colegas psicanalistas que tenho a oportunidade de participar, é interessante observar o impacto dessas “coisas”. Seguidamente são colocadas para debaixo do tapete e todos se olham com uma risada amarela, já que não se consegue articular muita coisa sobre elas. Para os recém-chegados ao campo lacaniano, então, pode parecer que nem existem! Seus nomes raramente são mencionados em trabalhos apresentados em jornadas, eventos, congressos, revistas, etc. Existem autores que trabalham com essas criaturas, claro! Mas convenhamos que aqueles que têm estômago para lidar com esses estranhos seres estão em número bem reduzido!
Acontece que o tempo vai passando e, ao avançarmos com nosso trabalho, eles não param de aparecer por mais que os deixemos no limbo. Mas eles não nos inquietam? Não queremos nem ao menos dizer um “oi”? Em nada nos interpelam? São necessários? O que trazem de novidades? Por que Lacan insiste tanto e os traz repetidamente de cabo a rabo na sua obra? Qual sua utilidade para pensar a clínica? Podemos seguir sem nunca passar por eles? E o mais interessante de tudo isso: como que nem ao menos perguntas sobre eles são feitas? Como eles podem nos calar ou nos atormentar a tal ponto de esperarmos que não sejam encontrados novamente?
Mas do que estou falando mesmo? Que seres são esses? Aqui vão apenas alguns deles, talvez os mais exóticos:






Toro, cross-cap, o grafo, garrafa de Klein, esquema L, esquema Z, nó borromeu, matemas, as fórmulas da sexuação, os quatro discursos e tudo o mais que possa ter alguma relação com a rainha das ciências: A MATEMÁTICA. O mundo abstrato, da lógica, das formalizações e de objetos nada palpáveis e manipuláveis em nosso mundo tridimensional é o estranho mundo das matemáticas. E então lembramos que na época escolar ela é quase sempre rechaçada: “Onde mais irei usar a fórmula de Báskara na minha vida?” “Cálculo de área do triângulo? Onde vou usar isso? Me serve do quê?”. Perguntas que talvez apontem para uma não relação direta entre esse mundo abstrato do raciocínio matemático com o mundo mais pé-no-chão com que temos contato diariamente. Por vezes o asco e o trauma são tamanhos que boa parte das pessoas colocam como critério de escolha de suas carreiras profissionais algo que não lide diretamente com as matemáticas. Bem, no nosso caso… quanta ironia!
Será que as perguntas feitas até então e outras que porventura vão nesse mesmo sentido nunca passaram pela cabeça dos leitores de Lacan ao longo da sua formação? Se sim, por que não se conseguem extrair consequências das mesmas, ou seja, que elas possam levar a uma investigação? Se não, o que será que acontece?
Em grande parte dos casos, o rechaço e a inibição são tamanhos que nem sequer nos aproximamos dessas estranhas criaturas. Nem ao menos o tempo de podermos perguntar algo sobre elas parece ser alcançado. Elas nos calam, não conseguimos relaciona-las com nada e parece que em grande parte dos casos nem ao menos é possível que se produza um processo de estudo sobre elas. O que impõe uma questão muito curiosa, já que as referências de Lacan às matemáticas estão presentes desde muito cedo e se estendem por praticamente toda a sua obra. E é espantoso como essas referências são as que pelas quais muitas vezes passamos rapidamente “virando a página”, mas que possuem uma densidade teórica muito interessante.. Já no Seminário Os escritos técnicos de Freud, ele traz algumas coisas interessantes como essas:
É nesse plano que se sustenta a dialética do olhar. O que conta não é que o outro veja onde estou, é que veja aonde vou, quer dizer, muito exatamente, que veja onde não estou. Em toda a análise da relação intersubjetiva, o essencial não é o que está ali, o que é visto. O que a estrutura, é o que não está ali. A teoria dos jogos, como a chamamos, é um modo de estudo fundamental dessa relação. Pelo simples fato de que é uma teoria matemática, já estamos no plano simbólico. Por mais simples que seja a definição que vocês deem ao campo de uma intersubjetividade, sua análise sempre supõe certa quantidade de dados numéricos, como tais simbólicos. (LACAN, 1986, p.255-256)
Ou ainda bem mais adiante, já do seu Seminário Mais, ainda:
É no jogo mesmo da escrita matemática que temos de encontrar o ponto de orientação para o qual nos dirigir para, dessa prática, desse liame social novo que emerge e singularmente se estende, o discurso analítico, tirar o que se pode tirar quanto à função da linguagem, dessa linguagem na qual temos confiança para que esse discurso tenha efeitos, medianos sem dúvida, mas suficientemente suportáveis - para que esse discurso possa suportar e completar os outros discursos. (LACAN,1985, p.66,)
Em sua coletânea de textos publicados primeiramente em 1966 sob o nome de Escritos, há uma bela quantidade de referências diretas e indiretas às matemáticas, à teoria dos conjuntos, à teoria de grupos, à topologia e outros:
Vê-se por esse exemplo como a formalização matemática que inspirou a lógica de Boole, ou a teoria dos conjuntos, pode trazer à ciência da ação humana a estrutura do tempo intersubjetivo da qual a conjectura psicanalítica necessita para se garantir em seu rigor. (LACAN, 1998a, p.288).
A categoria do conjunto, para introduzi-la, obtém nossa concordância, uma vez que evita as implicações da totalidade ou as depura. Mas isso não quer dizer que seus elementos não sejam isolados nem somáveis, pelo menos se buscarmos na noção de conjunto alguma garantia do rigor que ela tem na teoria matemática. (LACAN, 1998c, p. 654)
Já em outra coletânea chamada Outros escritos, as referências e articulações são abundantes. No conhecido texto Talvez em Vincennes…, de 1975, Lacan elenca os saberes que seriam pontos de apoio do analista para sua teoria e clínica, assim como Freud o fez a seu tempo. E aqui ele vai citar a topologia:
Topologia - refiro-me à matemática, e sem que em nada por enquanto a análise possa (a meu ver) infleti-la. O nó, a trança, a fibra, as conexões, a compacidade: todas as formas com que o espaço cria falha ou acumulação estão ali feitas para fornecer ao analista aquilo que lhe falta, ou seja, outro apoio que não o metafórico, a fim de sustentar sua metonímia. (LACAN, 2003b, p. 318)
É claro que o ponto aqui não é de fazer uma ampla revisão do que Lacan já disse em seus seminários e textos sobre o tema, mas apenas apontar que as referências feitas pelo psicanalista são abundantes. Há seminários inteiros dedicados a trabalhar com conceitos e ideias matemáticas, como os seminários A identificação, A lógica do fantasma e sem falar nos últimos seminários. E isso talvez nos aponte que há algo interessante e fundamental a explorar sobre as relações entre as matemáticas e a psicanálise.
Lacan por vezes colocou o termo “resistência” ou “rechaço” para caracterizar a relação do psicanalista com a teoria que fundamenta sua prática, como nessa passagem:
Ora, é fácil introduzir o pensamento a essa estrutura (fala da estrutura do sujeito), tão fácil quanto introduzir uma criança de idade relativamente precoce (no desenvolvimento escolar, se não nas fases analíticas) no estudo da matemática, através da teoria dos conjuntos. É no nível da matemática em processo de se fazer que começam as aflições. Podemos assim dar uma ideia da resistência com que se depara, entre os psicanalistas, a teoria de que depende sua própria formação. (LACAN, 2003a, p. 222)
Será que é de resistência / rechaço que se trata? Alfredo Eidelsztein também propõe algo nesse sentido, aproximando a noção de resistência do analista a uma resistência teórica do analista. Essa ideia parece muito interessante para pensar o que aqui se propõe, já que o “virar a página” quando nos deparamos com as estranhas criaturas poderia nos indicar “uma forma particular de resistência que se verifica para todos nós que lidamos com problemas relacionados ao conhecimento: uma tendência de deixar de lado o que 'não se encaixa' em nosso esquema referencial.” (EIDELZSTEIN, 2006, p.12) Será mesmo que as matemáticas “não se encaixam” no esquema referencial da psicanálise? E porque esse “não se encaixa” não poderia funcionar como causa de saber mais sobre isso?
Mas talvez aqui tenhamos um apontamento importante que nos ajude a pensar sobre essa dificuldade, já que falamos das figuras topológicas, matemas, grafos e outros como criaturas que pareciam estar voando pelas páginas, destacadas do texto e aparentemente sem relação com a teoria psicanalítica. Apontamento esse que pode ser uma hipótese de leitura sobre a nossa difícil relação com as matemáticas e a obra de Lacan e assim propor alguns destinos possíveis. Ou seja: talvez algumas pontes sejam necessárias para que essas “coisas” possam começar a nos instigar e circular ao invés de nos assustar. Pontes que podemos tratar aqui como possibilitando a própria leitura do texto lacaniano, dando a dignidade de existência a coisas que muitas vezes não existem, por mais que a visualizemos pelas páginas.
Ou seja, falo aqui de pontes que possam proporcionar um “querer saber mais” ao invés de “não querer saber”! Pontes que possam nos dar condições de ver o que apenas enxergamos. Pontes que muitas vezes não estão prontas a serem utilizadas e trafegadas, mas que necessitam serconstruídas, a partir do trabalho feito em transferência com nossos pares e da possibilidade de sustentação do não saber implicado em sua construção e utilização. E acredito que essa seja a parte mais divertida do trabalho!
Nessa construção, que exige um certo trabalho sempre em transferência, uma indicação de Lacan pode indicar uma direção possível:
O programa que se traça para nós, portanto, é saber como uma linguagem formal determina o sujeito. Mas o interesse de tal programa não é simples, já que supõe que um sujeito só o cumprirá colocando algo de si. Um psicanalista não pode fazer senão marcar seu interesse por ele, na medida mesma do obstáculo que aí encontra. (LACAN, 1998b, p.47)
Referências bibliográficas:
EIDELSZTEIN, Alfredo. La topologia en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Letra Viva, 2006.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: Mais, ainda [1975]. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1985
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud [1953-1954]. 3ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1986
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise [1964]. 3ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1988.
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953]. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.
LACAN, Jacques. O seminário sobre “A carta roubada" [1955]. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b.
LACAN, Jacques. ”Observação sobre o relatório de Daniel Lagache [1960]. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998c.
LACAN, Jacques. Apresentação das Memórias de um doente dos nervos [1966]. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro:Zahar, 2003a.
LACAN, Jacques. “Talvez em Vincennes… “ [1975]. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro:Zahar, 2003b.
Figura 1: EIDELSZTEIN, Alfredo. Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2010.
Figura 2: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A Angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2005.
Figura 3: EIDELSZTEIN, Alfredo. Modelos, esquemas y grafos en la enseñanza de Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2010.
Figura 4: LACAN, Jacques. Le Seminaire, livre 9: L’identification [1961-1962]. Versão digital disponível em: staferla.free.fr/S9/S9 L'IDENTIFICATION.pdf
Figura 5: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
Figura 6: LACAN, Jacques. O Seminário, livro 16: De um outro ao outro [1968-1969]. Rio de Janeiro: Zahar, 2008
Artigo publicado na Revista da APPOA volume 9, número 2, março de 2022. Para acessar a publicação original, clique aqui.
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