Sobre Psicanálise e as matemáticas: o real nosso de todos nós
- Artur Linck
- 3 de jul.
- 9 min de leitura
Atualizado: 10 de jul.
Ano passado escrevi um breve texto para o Correio n° 318 do mês de março chamado de “Criaturas voadoras”, onde tentei introduzir algumas questões sobre a relação que temos, enquanto leitores de Lacan, com as matemáticas em seu ensino e em especial a Topologia e a cadeia borromeana. Um texto com uma escrita mais livre, porém tentando pensar algumas coisas que percebia em minhas viagens à “Lacanolândia” acompanhado de colegas. Neste segundo momento pretendo retomá-lo apontando para outros desdobramentos que venho pensando, talvez ainda sem muitos contornos.
Na época da publicação recebi alguns retornos da leitura e alguns deles, compreensivelmente, foram mais ou menos assim: “são perguntas interessantes que você levanta, para quem está iniciando.” Talvez boa parte das questões que levantei no texto possua um endereçamento para quem ainda sente dificuldades até mesmo em se aproximar, numa postura talvez mais evitativa sobre o tema. Mas será mesmo que isso ocorre somente com quem está “Iniciando”? Sempre que recebi esse retorno procurei desdobrá-lo, apontando que do meu ponto de vista essas questões eram compartilhadas não somente por iniciantes (o que provavelmente é o mais crível), mas também por pessoas com uma leitura mais estendida, digamos, dos Seminários e Escritos de Lacan. Acredito que talvez não sejam as mesmas questões ou com a mesma complexidade e alcance, mas que pelo menos se espera que existam algumas para que o trabalho possa avançar. Seria então essa espécie de vertigem, receio ou aversão diante de tais “criaturas” algo típico dos principiantes?
De minha parte, possuo hoje a leitura de que a incursão das matemáticas na Psicanálise é de grande importância para nos advertir sobre o quanto podemos ficar obliterados pelas imagens, com as aparências e com o intuitivo. E quando uso o termo “matemáticas” incluo aqui a Topologia, grafos e o querido “nó bô”, só para citar os mais conhecidos. Reparem que não são coisas lidas num simples passar de olhos, em alguns minutos, como um feed de Instagram. Embora seja mais corriqueiro nos deparar na obra de Lacan com figuras topológicas e a amarração dos três registros RSI de uma forma visual, engana-se aquele que supõe que essas dariam conta por si só do que ali está em questão. Não se trata de desdenhar as imagens ou a planificação, pois elas possuem sua importância até para podermos visualizar buracos e escrevê-los. Fazer a trança RSI no espaço tridimensional, com os barbantes em mãos, por vezes pode ser complicado de podermos visualizar os cruzamentos, o que passa por cima e o que passa por baixo, os espaços reservados ao objeto a e os diferentes tipos de gozos destacados por Lacan. Sua planificação ou escrita é fundamental para podermos fazer a leitura para pensarmos muitas questões.
Talvez Lacan já advertido da captura do falasser às imagens e na sua época denunciando seus efeitos no ensino da psicanálise, coloca logo nas primeiras páginas do seu Escritos, na Abertura desta coletânea, a seguinte passagem:
É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si (LACAN, 1998, p. 11).
Conforme o psicanalista coloca no trecho acima, o levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si já coloca de saída que não se trata de uma leitura trivial, muito menos de uma passagem de olhos. Colocar algo de si talvez ponha em cena um outro tipo de leitura dos Escritos e dos Seminários (embora estes últimos sejam transcrições). Longe de ser uma leitura informativa, de entendimento, de uma simples mastigação de conteúdos a que estamos acostumados no ensino formal, ler aqui coloca uma certa relação do leitor com o escrito. Uma posição Outra daquela que estamos acostumados desde muito pequenos nas escolas, onde nossa tarefa parece ser por vezes apenas deglutir o máximo de comida teórica possível para num tempo depois, “vomitar” todo o material, sem qualquer relação com ele, sem qualquer questão, como qualquer coisa, para cumprir currículos. Não é à toa a fama de Lacan entre seus leitores, onde o psicanalista francês sempre leva a pecha de ininteligível, enigmático, obscuro, denso, difícil e incompreensível. Há a suposição de que seu leitor necessite realizar um trabalho, se envolver com o texto e colocá-lo em causa para sua pesquisa. Distinta posição perante a transmissão da Psicanálise, onde o que até então imperava era uma lógica de apenas seguir as “Beatitudes” e seus ditos, consequentemente tendo como efeito submissões à uma doxa rígida e imutável ao invés de leitores.
É possível dizer que quando falamos de leitura em Psicanálise não estamos falando simplesmente em sermos bem alfabetizados e leitores de muitos livros. Alduisio M. De Souza discute essa questão, nos lembrando do que se trata: “O que é leitura para Lacan e o que se lê na obra lacaniana? Jogo posicional, onde uma estrutura em ato se compõe. Pura estruturalidade lógica, determinada pelas posições do significante” (SOUZA, 1985, p. 17). A leitura da estrutura pressupõe a covariância de seus elementos, onde modificando ou adicionando novos, mudamos seus efeitos, implicando numa nova leitura e escrita. Ou seja, não estamos falando do nosso encontro com certos textos e a capacidade de simplesmente interpretá-los e sabermos do que estão falando. Essas habilidades possuem a sua importância com certeza, mas não trazem a especificidade necessária da leitura em Psicanálise, algo que considero de peso e complexidade ainda a ser mais bem explorado por todos nós.
Mas para trazermos aqui algumas coisas concernentes à leitura, podemos minimamente dizer que ela não é linear, cronológica, da esquerda pra direita, de cima pra baixo, com início-meio-fim e não estamos falando apenas de textos escritos, embora possamos pensá-los também por essa via. No que diz respeito à cadeia borromeana, por exemplo, a ideia colocada acima de trabalho do leitor na leitura é bem evidente, já que precisamos manipular os barbantes, trançar os registros a partir de uma certa ordem, se dar conta das suas possibilidades e impossibilidades, verificar se possuem a propriedade de amarração borromeana e escrevê-lo. Dessa forma, nos havemos com o real do nó, como bem coloca Milner: “O real do nó é a impossibilidade de desfazer um de seus anéis sem dispersá-lo como nó. É também a impossibilidade de percorrer algum dos anéis sem encontrar no caminho alguma parte dos outros” (MILNER, 2006, p. 15). Ou Erik Porge “...desde que se pratique a escritura borromeana, nossa relação com a escritura se modifica. (...) Esta é uma escritura que se pratica, mas onde o sujeito não pode se figurar, pois ele é determinado pela figura” (PORGE, 1998, p. 142-143)
Já que Lacan esperava levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si, podemos pensar, ao trazer o tema da leitura, que a relação do leitor com o escrito precisa estar em caus(a). Para isso, podemos pensar que é necessário que tal escrito seja capaz de tocar em algo do leitor, da sua clínica, da sua relação com a Psicanálise, que o faça pensar, voltar várias vezes a ele, traçar relações com outros elementos, que o deixe em dúvida sobre seu próprio saber e bordeando um certo buraco. É necessário, embora nada fácil de conceber! Como isso afinal se produz? Se isso se produz para alguém, é possível reproduzir esse efeito em outros, como uma passagem?
Em tempos ulteriores de nossa vida, onde estamos aprendendo a ler e escrever, os livros que mais nos chamam a atenção são os que possuem figuras, sejam gibis ou livros ilustrados. Parece que com Lacan isso se inverte: por vezes torcemos para algum texto seu tenha apenas texto! Juntar vogais e consoantes, depois sílabas em palavras, parece ser um processo muito difícil no início de nossa vida alfabetizada e os textos são lidos com muito custo, quase soletrados. Isso depois se repete quando estamos aprendendo uma língua nova e estrangeira, onde novamente passamos por algo parecido. Não é incomum quando vamos ler um texto em outra língua, com muita atenção se não somos fluentes, e acharmos coisas diferentes se compararmos com a sua tradução. Já passei por isso algumas vezes lendo alguns trechos de Seminários em francês e sempre achei incrível o efeito. Quando já estamos habituados à leitura em nossa língua materna, lemos tudo num “bater de olhos”, como se as palavras escritas quase fossem imagens. Não precisamos mais nos esforçar tanto, basta olhar! Existem até textos que circulam pela internet que são escritos com letras trocadas ou trocados por números e incrivelmente conseguimos realizar sua leitura, como esse: “35T3 P3QU3N0 T3XT0 53RV3 4P3N45 P4R4 M0STR4R C0M0 NO554 C4B3Ç4 C0NS3GU3 F4Z3R CO1545 1MPR35510N4ANT35!” Ou ainda: “Nõa imortpa a oderm das ltreas drtneo das pvaralas, bsta que a pmrireia e a úmtila etjasem no lguar crteo e vcoê enednte tduo o que etsá erctiso.”
Nesse sentido, entre tantas questões que possam ser levantadas a respeito do advento das matemáticas no ensino de Lacan, uma delas não poderia ser justamente essa questão da leitura, de uma forma muito mais radical? Ou seja, quando nos deparamos com alguns desses elementos grafados / desenhados, o que fazemos com isso? Embora sejam figuras, precisamos lê-las com o texto em questão e talvez não sem alguns outros elementos que possam fazer essa figura não ser apenas uma figura voadora. Não passamos por isso ao adentrar um museu e olhar as belíssimas obras de arte, sem por vezes apenas constatar a sua beleza estética? É quando um guia do local nos fala da mesma, contando sua história, grifando seus elementos e trazendo outros elementos do artista que essa obra “começa a falar” e ganha história. Talvez essa história cruze de alguma forma com a do apreciador e então essa obra ganha um plus ainda maior de significação.
Retomando sobre o tema desta pequena contribuição, como ficamos então? Será que somente os “iniciantes” teriam dificuldades ao se deparar com certos “monstrinhos” topológicos, talvez mais suscetíveis àquilo que se coloca como real para eles? Os “mais experientes” estariam mais habituados e por isso, tudo já estaria mais palatável e num piscar de olhos? Se pegarmos uma banda de papel torcido, por exemplo, temos como saber quantas semi-torções ela possui apenas olhando para verificarmos se é uma banda de Moebius? Apesar de ser possível o mergulho no espaço 3D da banda de Moebius, temos que ter em mente que ela é um objeto bidimensional. Alguns objetos topológicos perdem algumas propriedades mais evidentes com esse mergulho, como o cross-cap. Mas no que se refere à banda de Moebius, com esse mergulho podemos, com o auxílio de uma tesoura, fazer alguns cortes, e somente após isso, poderemos verificar de que estrutura se trata. Outra coisa notável: sabemos que a banda é uma superfície com somente uma face, por definição. Porém se com o auxílio de uma agulha fizermos uma inserção em um ponto de tal superfície, ela terá uma frente e um avesso como qualquer folha de papel. Localmente ela parece ter dois lados, mas “Lo que sucede es que hay que tener en cuenta toda la estructura de la superficie en cuestión para verificar que, a pesar de lo que parecía, se entra por un lado y se sale por el mismo lado.” (EIDELSZTEIN, 2006, p. 95).[1]
Podemos tomar esse ponto sobre a banda de Moebius para pensar a clínica e sua temporalidade não cronológica, o diagnóstico, como se escuta um sintoma, um sonho, um lapso, etc. Com essas ferramentas em mãos temos a chance de sair da intuição, de interpretações selvagens e de ligar certas sintomatologias com certos quadros diagnósticos. É necessário verificar com que estruturação psíquica estamos lidamos para que aquilo da ordem do sujeito do inconsciente seja colocada numa série, onde o valor aparente pode ser de outra ordem. Vejam que somente após (nachträglich) uma operação de corte é que se revela a estrutura, apesar das aparências, apesar daquilo que faz imagem. E isso também podemos pensar sobre a cadeia RSI, já que é somente após o corte de um dos anéis que se revela se a estrutura é borromeana ou não (cortamos um anel, todos os outros de separam). Acredito que todos que se colocam no campo da escuta psicanalítica acabam por se haver com essa condição, onde de entrada, em cada caso, estamos diante do não saber, operamos com ele e a partir dele. Não sabemos quais os significantes que estão em jogo de antemão, só de olhar para a pessoa que vem ao nosso consultório com suas demandas iniciais e com seu sofrimento. É necessária uma certa operação analítica de cortes, grifos e costuras para que uma escrita e uma leitura sejam possíveis e isso, acredito, está posto tanto para “iniciantes” como para os “experientes”.
Referências bibliográficas:
EIDELSZTEIN, Alfredo. La topologia en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Letra Viva, 2006.
LACAN, Jacques. Abertura desta coletânea. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
MILNER, Jean-Claude. Os Nomes Indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.
PORGE, Erik. Psicanálise e Tempo: o tempo lógico de Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
SOUZA, Alduísio M. de. Uma leitura introdutória a Lacan: exegese de um estilo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
Texto publicado originalmente na Revista da APPOA, volume10, número 2, março de 2023. Para acessar a publicação original, clique aqui.
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